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Saúde Mental: “A pegada psicológica da pandemia é maior que a da Covid-19”

By 2021-04-25 No Comments

Vários estudos mostram o aumento de doenças mentais ligadas à pandemia. Contudo, “hoje sabemos que somos fortes, mesmo quando estamos frágeis”. A pandemia mostrou-nos a nossa grande capacidade de adaptação, resiliência e boas práticas a reter no futuro

 

Today we live, today we breathe / Hoje vivemos, hoje respiramos
Today we know that we are strong when we are weak / Hoje sabemos que somos fortes quando estamos fracos
Today we trust, we overcome / Hoje nós confiamos, vencemos
If we’re gonna stand, we stand as giants / Se vamos ficar de pé, ficaremos como gigantes
If we’re gonna walk, we walk as lions” / Se formos caminhar, caminharemos como leões
(música Lions)

Começamos esta entrevista ao som de Skillet e entre garfadas numas “reconfortantes panquecas”. Prato, desde já, indispensável para Carolina Trindade durante a pandemia, tornando-o quase como principal.

Por sua vez, a música Lions, dos Skillet, serve quase como lembrete para aproveitar o presente e para que nunca duvidemos da nossa força interior, independentemente do obstáculo mais escuro que se estiver a atravessar. Esta foi a melodia que acompanhou Paulo Leitão durante os dias de isolamento pois, segundo o próprio foi “isto que a maioria de nós teve de experienciar durante a pandemia”.

No estudo “Returning to resilience: The impact of Covid-19 on mental health and substance use”, realizado pela Mckinsey em 2020, nos EUA, no geral impacto da pandemia, observa-se um crescimento exponencial da ansiedade e depressão, bem como do distress – a vertente negativa do stress – com 35% dos inquiridos a referirem ter experienciado ansiedade e sintomas depressivos nas últimas semanas e 27% reportando elevados níveis de distress.

Estes resultados eram ainda mais agravados se considerássemos apenas a população que experienciou uma redução ou perda do seu emprego, onde 42% dos respondentes relatava ter experienciado sintomas de ansiedade e depressão nas últimas semanas, com 34% a relatar níveis elevados de distress. Mais grave ainda, este mesmo estudo indica que uma em cada cinco pessoas tomou comprimidos para ajudar a lidar com a ansiedade, mesmo sem a necessária prescrição médica.

“Como sabemos, durante este período houve um aumento da psicopatologia, um aumento de perturbações psicológicas e um agravamento de problemas psicológicos pré-existentes. Existe todo o tipo de stress associado a pandemias, como o stress socioeconómico. Mas um dos principais tipos de stress é a incerteza, mais agravado pela associação à doença e à morte”, refere a psicóloga da SPEM, Carolina Trindade.

A pegada psicológica da pandemia é maior que a pegada médica [da Covid-19].” Carolina evidência que, no Canadá, segundo um estudo do psicólogo clínico Steven Taylor, com uma amostra de 6000 pessoas, “20% a 25% tinham sido impactadas a nível psicológico com depressão ou ansiedade e apenas 2% tinham sido infetadas por Covid-19”.

Há profissionais que já falam do síndrome de stress Covid como uma perturbação de ajustamento”, explica a psicóloga. No futuro, teremos, por isso, “que lidar com questões da ansiedade sobre a saúde, com stress pós-traumático, fadiga e esgotamento emocional, o qual é crescente de confinamento para confinamento”.

Devido ao tempo que estamos a viver, também os doentes de EM têm desafios emocionais acrescidos, criados pela instabilidade emocional que a doença traz. Sabe-se que em momentos de maior tristeza, stress e ansiedade, há uma maior probabilidade de surtos e de progressão da doença. “Isto não quer dizer que não devemos sentir estas emoções, mas sim que devemos fazer um bom uso delas, aceitando-as e gerindo-as de forma construtiva”, afirma a especialista.

A psicologia tem aqui um importante papel na facilitação da identificação e gestão de emoções, aumentando a qualidade de vida e sensação de bem-estar. “O psicólogo trata a história de vida não só com a doença física, mas para além da doença física”, sublinha.

O lado B(om) da pandemia

Apesar do isolamento social, da solidão e depressão (especialmente nos idosos com um aumento de suicídios nesta faixa etária), importa ter em conta que a pandemia também trouxe ao de cima a solidariedade das pessoas, a união e apoio mútuo”, constata Carolina Trindade.

Se há algo que esta pandemia nos tem ensinado é que não podemos controlar tudo”. As emoções obrigam-nos a confrontarmo-nos com o nosso interior e essa foi a aprendizagem desta experiência: “só identificando as emoções é possível geri-las e desenvolver resiliência”, explica a psicóloga.

Muitas relações foram redefinidas, outras aprofundadas. Para muitos, “foi um reencontro com a família e amigos que, mesmo à distância física, aconteceu com maior proximidade”, sublinha.

Paulo Leitão, psicólogo organizacional e recruitment consultant na Experis, afirma ainda que “se existe algo que a pandemia trouxe, foi sem dúvida a prova que o teletrabalho funciona, dando razão a muitos trabalhadores que pediam uma maior flexibilização ao nível do trabalho. (…) Passou a observar-se que é possível as pessoas fazerem o seu trabalho sem estarem sob o olhar atento das suas chefias e sob o jugo do escritório e dos horários convencionais de trabalho.”

Em termos de saúde mental, o fenómeno da “redução do commute time pode, eventualmente, significar uma redução do stress associado ao medo de chegarmos atrasados e/ou do stress do trânsito, minimizando, inclusive, a preocupação por assegurar que toda a rotina matinal estava ajustada ao segundo”, afirma o recruitment consultant.

Paulo conta que passou a utilizar o tempo que despendia na viagem de metro para ler, mas diz que conhece pessoas que começaram a dedicar-se a diferentes hobbies, como o Yoga, por exemplo. Converter esse tempo que anteriormente despendíamos a ir para o escritório, alocando-o a uma atividade que nos dê prazer parece algo relativamente banal, que não teria um impacto tão grande quanto isso, mas a verdade é que um estudo realizado na Austrália – “The impact of Covid-19 on time/monetary costo f commuting” – converteu este “gasto” de tempo em valor monetário para as pessoas e para a economia do país e, apenas na região de Sydney, tal representaria uma redução de custos na ordem dos 5 biliões de dólares (4 mil milhões de euros), ou seja, o impacto mundial desta alteração poderia ser enorme.

No entanto, para Paulo Leitão, “não devemos ignorar que a ausência de uma deslocação física para o trabalho pode comprometer a capacidade do nosso cérebro realizar o shift entre o ‘eu profissional’ e o ‘eu familiar’, o que, muitas vezes, implica transições abruptas de um papel, podendo ter um efeito bastante exigente para a nossa saúde mental.”

Desta forma, de modo a conseguirmos tirar o máximo partido do tempo que ganhamos, o psicólogo aconselha a estabelecer uma espécie de “Psychological Commute Time”. Por outras palavras, há que replicar ações que gostávamos de fazer na ida para o trabalho (ouvir música, um podcast, ler um livro, etc). “Isto pode ser feito de uma forma simples, basta bloquear na nossa agenda um tempo mínimo de transição entre um papel e outro (algo como 15 minutos tende a ser suficiente) utilizando esse tempo para um autocuidado”, explica.

Também devido às barreiras serem mais ténues e o espaço de trabalho ser agora, igualmente, o espaço de lazer, muitas vezes há a tendência de trabalhar a qualquer hora ou até mesmo a todas as horas. Com o objetivo de “encurtar distâncias”, muito se tem recorrido a plataformas como Zoom, Teams, entre outras.

Neste sentido, Paulo Leitão fala sobre a medida colocada em prática pelo Citi Bank – o “Zoom Free Fridays”. Tal permite aos empregados “desligar das constantes chamadas e videocalls, que todos percebemos que acabam por ser muito mais úteis para as chefias sentirem que mantêm o controlo, que propriamente para o empregado, que preferia estar a utilizar esse tempo para completar a tarefa urgente que tem de entregar. Para mim, este é o exemplo de uma boa prática empresarial em tempos de pandemia”.

Com a pandemia foram-nos tiradas “a maior parte das coisas que nos podiam distrair e permitiam fugir de nós”, diz Carolina Trindade. Porém, segundo a psicóloga, continuamos à procura de novas formas de o fazer, em vez de aproveitarmos “uma experiência que pode realmente transformar a nossa vida”.

Nós somos a pessoa mais difícil para se estar”, podendo até sentir medo, ansiedade e depressão ao conviver connosco próprios, explica Carolina. Por isso, o isolamento foi necessário para abrir esse espaço de contacto com o que precisava de ser “ajustado”. A única forma de suportar a nossa própria companhia é não fugirmos dela, “mas com compaixão por nós mesmos”. Tal é uma aprendizagem muito difícil, “requer uma boa dose de determinação e de curiosidade para aprendermos sobre a experiência humana”, conta.

“A pandemia levou-nos a colocar muitas coisas em perspetiva. Levou-nos ao contacto com os nossos valores e prioridades. E isso é bom, mesmo que custoso. (…) Inclusive, foi o necessário para perceber que, ao estarmos presentes, no momento real, nos leva a viver o que temos e como temos que viver”, sublinha a especialista.

O que o mundo nos reserva: boas práticas a levar para o futuro

Apesar de toda a nossa ansiedade inata e de todas as nossas conjunções, segundo Carolina Trindade, “nós somos muito bons a adaptar-nos”. Conhecer-nos pela adversidade traz-nos “crescimento e força para reagir às exigências e desafios da vida, harmonizando as nossas ideias e emoções”.

“A maioria das pessoas é resiliente contra o stress e, por isso, acredito que vão voltar ao seu balanço normal assim que a pandemia terminar (…), a adversidade dá lugar à reestruturação. Contudo, não podemos descurar os extremos de resposta excessiva ou ansiedade excessiva e os extremos de resposta insuficiente”, avança.

Para nos sentirmos melhor e contrariarmos a tendência de “alerta constante”, “preparados para qualquer tipo de ameaça” (razão pela qual entramos mais em pessimismo), devemos reprogramarmo-nos a um nível mais consciente, tanto durante o confinamento, como no “desconfinamento”. Para isso, a psicóloga explica que basta relembrar momentos agradáveis (escrevendo sentimentos e memórias boas); acalmar a nossa mente (com exercícios de respiração, pois alteram o estado de espírito); agradecer o que de positivo vamos encontrando; e, no fundo, ser proativo na manutenção de pensamento positivos.

“Esta introspeção, de que tanto se fala agora, converge um pouco com a importância de entender a fonte de uma angústia preexistente ou de aumentar o autoconhecimento e a inteligência emocional, para que possamos não só resistir, mas também ter uma qualidade de vida cada vez maior”, explica Carolina.

Há varias formas de introspeção, desde as práticas mente-corpo (como o yoga e a meditação), a simples balanços de vida, escritas criativas e reflexivas, leituras. “A forma é o menos importante. O resultado estará na nossa capacidade de estar presentes o mais possível, connosco ou com os outros”, vivendo o presente na sua plenitude, refere a psicóloga. “O não-consciente parece desejar ser esquecido”, contudo, para Carolina, este expõe “sempre o seu potencial profundo às nossas necessidades mais insólitas”.

Neste sentido, Carolina projetou um grupo terapêutico de autoconhecimento e mindfulness, para os associados da SPEM, de forma a promover, através de sessões online, uma maior autoconsciência e inteligência emocional. Além disso, criou ainda a iniciativa “O que é a saúde mental?”, um serviço de psicologia online, que irá disponibilizar-lhe uma hora, quinzenalmente, para esclarecimento de dúvidas sobre saúde mental e psicoeducação.

Paulo Leitão acredita que “vamos caminhar para uma realidade organizacional que, cada vez mais, vai ter de considerar as quebras e pausas necessárias para o trabalhador. Quem sabe se será o momento de, finalmente, darem ouvidos aos psicólogos organizacionais que andam há bastante tempo a dizer que uma semana de trabalho de quatro dias pode, na verdade, resultar num aumento de produtividade”.

Relativamente à inclusão laboral que o teletrabalho possa ou não ter gerado, Paulo confessa que a pandemia não lhe parece ter resultado numa maior ou menor inclusão. “Mais do que propriamente a pandemia, o que levou e está a levar a uma maior inclusão de trabalhadores com deficiência é o novo sistema de quotas de emprego para essas pessoas”.

Para o psicólogo, este é um tema que têm de ser pensado, “não para apenas atingir quotas, mas para desenhar de facto aquilo que é o mundo do trabalho do futuro. Temos de colocar a pessoa com deficiência numa determinada vaga por esta ser tão apta para a função como outra pessoa qualquer. (…) De outra forma, estamos apenas a trabalhar ao contrário, a identificar pessoas e a criar esperanças, para depois tentar encaixá-las num mundo onde ninguém teve consideração pela análise necessária de como é que a pessoa se inserirá no mesmo”, termina.

O recruitment consultant reforça ainda que as boas práticas a retirar desta fase pandémica e que devemos levar para o futuro devem ser a “flexibilização dos horários e da realidade laboral com a introdução do teletrabalho; a potencial mudança de mentalidade do foco no número de horas trabalhadas para o foco nos resultados produzidos; e talvez um meio laboral mais humano”. A pandemia pode ter levado a que, no futuro, exista “uma maior aceitação de que, para além de trabalhadores, somos humanos e podemos ter outras responsabilidades (familiares, por exemplo), outros problemas (doenças, etc) e merecemos consideração por isso”.

Em 2020, algumas empresas distribuíram parte dos lucros pelos colaboradores, o que, para Paulo, “demonstra reconhecimento pelo esforço de todos durante um ano atípico”. Muitas outras “disponibilizaram serviços de apoio à saúde mental, encorajaram jogos online e outros momentos lúdicos entre colegas, procuraram partilhar a diversidade e o lado humano de algumas chefias e dos colaboradores no geral (por exemplo com cursos de culinária dados por colegas de diferentes nacionalidades). Acho que isto vão ser questões cada vez mais diferenciadoras. É um bom sinal, é a humanização das empresas”, afirma.

Carolina diz que “com calma, gratidão e sensatez”, este poderá ser “um momento de maior união”. Contudo, explica que também poderá ser um momento de “alguma confusão”. Por isso, “é importante sermos empáticos”, reitera.

Aos poucos vamos saindo de uma temporada que nos foi exigente. Será bom ter isso em conta, conscientes de que o equilíbrio será restabelecido na calma, sendo essencial uma maior abertura e compaixão para com a nossa vulnerabilidade e a dos outros”, afirma Carolina.

Neste futuro, que ainda nos é tão incerto, levanta-se um pensamento: “não é o que o mundo te reserva, mas o que tu podes dar ao mundo”, disse Anne Shirley-Cuthbert (de “Anne of Green Gables”).

Iniciada entre música e comida, esta entrevista só poderia terminar recomendando uma atividade magistral para praticar enquanto estiver embrenhado no seu “Eu”: ver uma série. Mas não uma série qualquer. Uma “série leve, com um grande poder de inspiração”, imagens lindas de paisagens rasgadas (para o aliar das quatro paredes de sua casa) e “uma personagem que nos alimenta a alma pelo entusiasmo e ingenuidade com que observa o mundo”. Para Carolina, a escolha é óbvia: “Anne with an E”.

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